terça-feira, 15 de setembro de 2015

A Cultura do Descartável

"Um sujeito se lembrará de muitas coisas que você não pensaria que ele se lembraria. Veja eu, por exemplo. Um dia, lá em 1896, eu estava atravessando para Jersey em uma balsa e quando saímos havia uma outra balsa chegando e nela havia uma garota esperando para descer. Ela estava num vestido branco, e carregava um guarda-sol branco. Eu só a vi por um segundo. Ela certamente não me viu, mas aposto que desde então não se tenha passado um único mês em que eu não tenha pensado nessa garota."
(Bernstein, em o Cidadão Kane)

No início do século XVIII uma invenção mudaria toda a humanidade: a máquina a vapor. Com ela, os bens de consumo poderiam ser produzidos numa escala muito maior, utilizando menos mão de obra. Iniciava, aí, uma nova era para a humanidade.

Propaganda de uma máquina à vapor 'portátil', de 1865


Essa capacidade de produção em massa se potencializou em 1914, quando Henry Ford implantou a primeira linha de produção da história. Começávamos a ter a capacidade de produzir em abundância, acima até mesmo das nossas necessidades.

O modelo fordista de produção se espalhou rapidamente, aumentando ainda mais nossa capacidade de produção em escala.


Como praticamente toda sociedade estava baseada no sistema capitalista, era preciso criar, então, a necessidade de consumo deste excedente. Do contrário, todo sistema ruiria.

Assim, em 1924 surgia o cartel Phoebus, que reunia os fabricantes de lâmpadas incandescentes, e foi responsável por reduzir propositalmente a vida útil do produto, fazendo com que os consumidores fossem obrigados a comprar novas lâmpadas numa periodicidade cada vez menor. Nascia aí a obsolescência programada: uma necessidade artificialmente criada para escoar a nossa capacidade cada vez maior de produzir.


A obsolescência programada foi se alterando durante os anos, e hoje em dia não se caracteriza pela pela perda real de utilidade do produto, mas uma perda imaginária. Você não troca a roupa porque ela estragou, mas porque saiu de moda. Não troca o celular porque ele não funciona mais, mas porque existe outro com mais funções.

Do primeiro ao último iPhone: será que os primeiros estão realmente inutilizáveis?


Seria muita inocência acreditar que essa nova cultura do descartável ficaria restrita aos bens de consumo. Nós seres humanos somos criaturas culturais. Nos relacionamos conforme nossa cultura. E a cultura do descartável permeia todas nossa relações. Inclusive as afetivas.

E hoje em dia, com a vida em grandes centros, temos abundância de pessoas, da mesma forma que temos abundância de bens. E como nós aprendemos a lidar com a abundância? Com o desperdício. As pessoas têm que ser tornar obsoletas na nossa vida, assim como as coisas.

Não importa o quão precioso seja o recurso:
aprendemos que se há excesso, podemos desperdiçá-lo à vontade

Conheça alguém na noite e deixe cair bebida nela. Ou fale algo que seja mal interpretado. Ou qualquer outra besteira que desagrade. Você será imediatamente descartado, já que existe uma infinidade de outras possibilidades na fila de espera. Descartar é algo natural na nossa cultura.

E da mesma forma que Ford criou a linha de produção, em 2012 a Hatch Labs criou o Tinder. É o fordismo aplicado aos relacionamentos afetivos. Escolhemos o parceiro numa linha de produção de possibilidades. E nos desfazemos deles com a mesma facilidade.

Pessoas novas a cada arrastar de dedo

Mas justiça seja feita: esse fenômeno não nasceu com o Tinder, ou com qualquer outro aplicativo de paquera. Esses aplicativos somente evidenciam um movimento que nasceu junto com a primeira máquina a vapor, no século XVIII: a nossa cultura do descartável.

E escolhemos por motivos tão fugazes quanto os motivos que usamos para descartar, uma vez que temos a necessidade de continuamente descartar e encontrar novos parceiros. Por isso, uma pessoa pode ser escolhida pela camisa que está usando, e descartada pelo riso diferente. Ou vice-versa.

Somos, atualmente, uma geração que não almeja mais encontrar alguém, mas somente permanecer na eterna procura.

Bernstein, personagem do filme O Cidadão Kane, diz que viu em 1896 uma garota na estação de trem, e desde então nunca se passou mais que um mês em que ele não lembrasse dela. Seria impossível imaginar algo assim nos dias de hoje. Bernstein seria considerado um maluco.

Bernstein viu, na sua juventude, uma garota de relance, e nunca mais esqueceu dela

Sonho com um mundo com mais malucos como Bernstein.


http://ruimcomelas.com.br/

Nenhum comentário:

Postar um comentário